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Só Acontece aos Outros | Apresentação | Álvaro Laborinho Lúcio

 

Só Acontece aos OutrosSó Acontece aos Outros - Histórias de Violência | Literatura de não-ficção, jornalismo
Autora: Maria Antónia Palla
Prefácio: Helena Matos
Literatura de não-ficção, reportagens
ISBN: 978-989-99946-1-4
240 páginas.

 

As histórias de violência de Maria Antónia Palla
Álvaro Laborinho Lúcio

O repto para que passemos de espectadores distantes e desresponsabilizados, a atores comprometidos.
A qualidade da escrita, a profundidade do pensamento, a generosidade da observação crítica, a cultura, a sabedoria (da autora)

Maria Antónia Palla "Pela força das histórias da autora, confrontámo-nos com uma dupla visão da violência má"


Era uma tarde de fim de outono. A Livraria Férin, à Rua Nova do Almada, abria-se à apresentação da obra de Maria Antónia Palla, Só Acontece aos Outros, e ali acorriam, vindos da memória e do reconhecimento, muitos dos seus admiradores, envolvendo no mesmo sentimento de gratidão a mulher, a cidadã, a jornalista, a amiga.
Falou-se de violências. Das violências virtuosas, sustentáculos da intolerância contra a discriminação e a violação dos direitos mais fundamentais; e das violências más, as violências das histórias narradas por Maria Antónia Palla (MAP).
Discorreu-se sobre a relação entre o eu e o outro; procurou-se saber quem somos nós perante os desafios da violência má; aceitou-se o repto para que passemos de espectadores distantes e desresponsabilizados, a atores comprometidos; ensaiou-se, por fim, o traço de outra relação, essa, agora, entre o ontem e o hoje, para então nos questionarmos sobre o que mudou, ou não, entretanto.
Pela força das histórias da autora, confrontámo-nos com uma dupla visão da violência má, o que nos levou a distinguir a violência dos atos, da violência das vidas e, assim, a separar a censura daqueles, do juízo sobre a qualidade da pessoa que os pratica, tantas vezes tão diferentes.

"Na madrugada do dia 20 de outubro, uma criança de três anos, [...] foi atingida com um pontapé no ventre. O autor da agressão, [...], companheiro da mãe da garota, adormeceu de seguida.
Noite fora, a pequena Isabel gemeu.
[...]
Por Maria Isabel nada mais haveria a fazer do que certificar o óbito.
De imediato a mãe e o companheiro foram detidos. Ela. prostituta; ele, sem profissão. Viviam num quarto, em pleno Bairro Alto, paredes meias com gente "honesta" e gente de má vida", uns e outros chocados com o que se passou. Como aceitar que tamanha barbaridade possa acontecer à nossa beira?
Ao espanto, ao escândalo, deve sobrepor-se a cautela. Os filhos dos outros são também nossos filhos".

Fomos, assim, remetidos, todos, para o quotidiano violento das vidas. Convocados a pensar a família, abandonando estereótipos ilusórios e enfrentando, de uma vez, as consequências nefastas de uma sã democratização do espaço familiar, ou doméstico, no interior do qual tão difícil se mostra a transição de uma estrutura tradicional, autocrática e hierarquizada, para uma comunidade de sujeitos de direitos, iguais na sua dignidade, e revestidos de um poder legitimado em nome de uma «igualdade partilhada», para usar a feliz expressão de Alain Renault. A tal reflexão nos conduziu, aliás, o excelente prefácio de Helena Matos quando, trazendo-nos à memória George Steiner e os livros que nos lêem e nos tornam diferentes daquilo que éramos, nos interpela com a pergunta de saber se "pode um livro fazer-nos encontrar com quem nunca fomos"? , e nos dá conta de que "foi essa a 'pergunta-assombro' que [experimentou] quando [leu] Só Acontece aos Outros, de Maria Antónia Palla".

No meio de tudo, vieram cruzar-se o jornalismo e a justiça.

"A justiça veio a declarar Albertina 'débil mental'. Isso, porém, não a inocentou do crime não consumado. [...]. Albertina foi condenada a doze anos de prisão. Dela os jornais não tornaram a falar". Entretanto, "Pode parecer mentira, mas aconteceu, um juiz do tribunal de família reconheceu a um homem o direito de gastar em vinho o que devia entregar para sustento dos filhos! [...] Para que servem e a quem servem os tribunais de família?".
Falou-se, criticamente, dos moralismos, dos higienismos morais que, aqui e ali, vêm à supuração, quer num lado, quer no outro; e voltou-se à autora, à jornalista, e à sua nobre condição de referência exemplar. Nela se reconheceu a qualidade da escrita, a profundidade do pensamento, a generosidade da observação crítica, a cultura, a sabedoria. E exempliflcou-se, falando-se da escola, do direito aos direitos, da diferença entre culpa e responsabilidade. De tudo isto, nos fala MAP com a segurança de quem investiga, com o rigor de quem divulga, com a humildade de quem reconhece a enorme complexidade dos problemas que traz à consciência dos leitores.

Era, porém, da apresentação da obra que se tratava. Os presentes ansiavam por que se abrissem as portas que cada página representava.
Como fazê-lo então?
Olhámos as palavras escritas na primeira das histórias — Não Há Lobos no Monte:

"Foi dia mau esse sábado. Dia sagrado, de casamento. De festa. De vinho. Dia de maus pensamentos. Qualquer um podia pegar numa rapariguinha que andava pela aldeia ao abandono". Sábado!


Não falta quem venha asseverar que as mulheres gostam de ser maltratadas e confessam, 'ele que me bate é porque me quer bem


Para muitos, todos os dias são sempre iguais. Podem, por isso, chamar-se qualquer coisa. Até mesmo sábado. Lembrámo-nos de Vinícius de Morais e de uma outra apresentação nossa, já perdida no tempo.

Pegámos no seu Dia da Criação e, assim, na sua companhia, pudemos ler Maria Antónia Palla. E então dissemos:

"Porque hoje é sábado, há uma menina comida por lobos que não existem
e, porque hoje é sábado, a «criança desaparece e todos parecem descansar».
Porque hoje é sábado, há uma anciã violada por um jovem, recém casado

e, porque hoje é sábado,
quando ela passa não falte quem
"murmure com certa malícia: olhem a velhota, com aquela idade e ainda atrai a rapaziada!...".

Porque hoje é sábado,
há uma jovem mina que se apaixona por um futebolista, que,
porque hoje é sábado,
procura a fama no Parque Mayer, e,
porque hoje é sábado,
se encanta com o director de cena e engana o futebolista que,
porque hoje é sábado,
a agride violentamente
e, porque hoje é sábado, não falta quem venha asseverar que as mulheres
gostam de ser maltratadas e confessam,
porque hoje é sábado,
"ele que me bate é porque me quer bem".
Porque hoje é sábado,
há um jovem que quer ser poeta e ama a mãe, tramado pelo amigo Zézé, a morrer numa prisão em Huelva
e, porque era sábado,
a morte foi suicídio,
e por ser sábado
há um cônsul amedrontado que afirma, perante as dúvidas:
"nós, os cônsules, não estamos autorizados a fazer declarações, de resto, não há nada a declarar".
Porque hoje é sábado,
há uma mãe a matar um filho à nascença e,
porque hoje é sábado,
pune-se a mulher que mata o filho à nascença, pune-se a mulher que abandona o recém-nascido".
Mas, talvez porque hoje é sábado, "nada se faz para dar à mulher sozinha a possibilidade de sustentar o filho pelos seus próprios meios". Nem se adoptam ' medida* para responsabilizar o homem por uma paternidade não desejada e não assumida . E. assim, porque hoje é sábado, ninguém pergunta "quem matou realmente o filho de Alzira?"
Entretanto, porque hoje é sábado,
há uma dona Odete, dona também do Pensionato dos Olivais, a dizer:
não estou aqui para explorar ninguém. As crianças são-me entregues e eu tomo conta delas. Estão sempre comigo e [porque hoje é sábado] até me chamam mãe".
Porque hoje é sábado,
há um filho que se suicida, enquanto o pai dorme, e a mãe desculpa:
"o meu marido só é mau quando está bebido. Nessas alturas, é verdade que me chega a bater, mas pouco. Chama-me nomes, é verdade. Mas tirando isso, melhor homem no mundo não há".
Chama-se ela Felicidade!
Talvez porque era sábado!
Porém, porque volta a ser sábado,
"Anabela tem 15 anos. Fez a instrução pri mária e agora está em casa a tomar conta dos irmãos, nove ao todo
[...]. Mantém-se afastada das conversas, ouvindo tudo com atenção, finalmente [aproxima-se e diz:
'eu conheci o Afonso. Ainda na véspera de se matar o vi na padaria. Estava com um ar muito triste. Perguntei: tens fome? Ele não disse nada, mas eu sabia que não passava bem. Estava sem dinheiro e já tinha pedido vinte escudos a um irmão meu'.
As lágrimas saltaram-lhe dos olhos e escorreram-lhe pelo rosto mal lavado.
[...]. São as primeiras lágrimas que vimos chorar por Afonso.
Apetece abraçá-la mas algo nos retém.
[...]. E ela prossegue: 'Eu vi-o chorar muitas vezes. Tinha dó dele. Lembrava-me um irmão meu que se foi embora de casa porque o meu pai dizia que era um vadio. Se calhar, era.
Mas
Eu acho que os pais não deviam fazer estas coisas. Mesmo que não nos tenham amor, ao menos não nos faltem com cama, comida, remédios e algum dinheiro para as reinações.
Afonso merecia tudo isso: era bem educado, era muito bom. Trabalhava. Gostava dele como de um irmão. Repartia o que tinha com ele, sem. dizer nada a ninguém. Nesse dia, na véspera da morte, fui comprar um quilo de peros e perguntei-lhe: queres um? Ele não respondeu, mas aceitou. Depois, olhou para mim e sorriu'".
Porque hoje é sábado,
há um juiz a jogar ao direito, aos papéis, aos processos, desligado da vida, das gentes e da violência de cada dia e, assim,
porque hoje é sábado,
há um "pai que se furta ao dever de trabalhar e sustentar os filhos";
porque hoje é sábado,
há um juiz que desobriga o homem de entregar à família o que lhe deve";
porque hoje é sábado,
há um estado que deixa na insegurança e na miséria as mulheres e as crianças".
Porque hoje é sábado,
há uma mulher que perde a casa porque um recém-nascido leva ao excesso de locatários, e ela fica nâ rua por excesso de amor.
Mas,
porque nem sempre é sábado,
há um grupo de jovens mulheres em auto-gestão na Sogantal. "No dia 25 de Abril de 1974, no mesmo dia em que o fascismo caía em Portugal [e não era sábado], uma jovem operária, Lúcia Palma Lampreia Luís, foi suspensa quatro dias por ter parado o trabalho durante hora e meia. Lúcia recusou-se a cumprir o ritmo de produção que lhe era exigido. Aos gritos da contra-mestra, respondeu-lhe 'que não tinha medo'".
Ora,
hoje não é sábado e,
para que hoje não seja mais sábado,
ouçamos Maria Antónia Palla:
"Os exemplos de violência são mais comuns do que se imagina e ocorrem à nossa porta. Fechamos os olhos e não gostamos de falar deles. [...]. No fundo, por vergonha ou por medo, temos tendência a pensar que são coisas que só acontecem aos outros. Não é verdade".
E o prefácio voltou. Como se fosse um posfácio, ficaram, a terminar, as belas palavras de Maria Helena Matos: "... aqui estão as vidas dos anos 60 e 70 a que nesta nova edição se juntam a de Amélia nos anos 80 e a de bela - com um final feliz — em 2017. Mas (e essa é uma conclusão que eu não sei se alguém partilhará comigo) estamos nós. Tire-se o contexto de época, apaguem-se em cada um destes textos as marcas do tempo e ficam pessoas, pessoas que sofreram e que fizeram sofrer, que amaram e foram magoadas, pessoas indiferentes ao sofrimento dos outros... ou seja, ficamos todos nós. Em qualquer tempo".
E fomo-nos à obra. Todos. Ávidos de leitura.

 

Álvaro Laborinho Lúcio. Texto de apresentação do livro na Livraria Ferin, em 5 de Dezembro de 2017. Publicado no Jornal de Letras na edição de 17 a 30 de Janeiro de 2018

 

 

 

 
 
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